quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A Lagoa



   


Ali estava sentado, à espera. Não sabia bem do quê, mas esperava. Parecia-lhe aliás a melhor solução. A única pensava para si mesmo. Enquanto isso, metros mais à frente, uma equipa médica lutava incansavelmente por um sinal de vida no olhar. Nada parecia resultar. Dez minutos, quinze, vinte e por fim, deram por terminado todo o esforço sem qualquer sucesso. A vida tem mortes assim. Estúpidas. Todas as mortes são estúpidas quando se é apenas uma criança. Ele observava afastado, junto de si um psicólogo tentava mostrar-lhe que a vida tem que continuar. Tudo ruiu quando viu a brancura do lençol a tapar por completo o corpo da pessoa que mais amava no mundo. Mais do que a si mesmo. Mais que o maior amor que um dia sentiu. Não queria; não podia acreditar. Não aceitava que com doze anos alguém pudesse fechar para sempre os olhos. Tanta brincadeira que ainda havia. Tanto escorrega para descer, Natais para festejar, prendas para rasgar o papel e bolos de anos para saborear - chocolate! Tinham de ser sempre de chocolate. Parecia não haver sabor no mundo que mais lhe agradasse. Tudo agora perdera o sentido. Olhava com os olhos fixos, nublados pelas gotas que lhe transbordavam das pálpebras e escorriam pelo rosto. Pudera trocar de lugar com ele e não hesitaria uma única vez. Nos seus quarenta e três anos nunca sentiu uma dor tão imensa. A ponto de lhe rasgar a alma, que é impossível de rasgar. Nada, nem ninguém merece uma dor assim. Tudo porque naquele dia decidiu ir nadar na lagoa da Aldeia que o viu nascer. E levar consigo o seu mais-que-tudo. Em casa, lembrara-se agora, certamente que a mãe estava a preparar a refeição. Um fim-de-semana com Feriado dá sempre um jeitaço para pôr em dia as tarefas de ser pai e filho: umas corridas atrás de uma bola, umas quedas de bicicleta quando se teima em fazer com o corpo aquilo que depois dos quarenta se torna mais difícil. Um minuto de distracção...uma merda de um minuto. Não foi mais que isso e nesse mesmo minuto a sua alegria de viver esvaiu-se; desvaneceu-se na água. Encarar-se seria desde hoje a maior mágoa que poderia viver. Agora precisava de um abraço; de sentir à sua volta o suave - mas doce - perto de peito no peito e ouvir "Adoro-te Pai!". A vida do seu filho era a sua vida e agora que o perdera, perdera com ele a sua vida. O choro já não saía porque todas as lágrimas que tinha dentro de si tinham já encontrado o caminho que corre rosto abaixo, perdendo-se para sempre como para sempre se perdeu alguém que se ama. Imaginava o dia seguinte - não porque o quisesse viver, que por si juntava-se já ao seu filho - : o escuro vazio da dor e da ausência; a demência da solidão mesmo que acompanhado; a vida quando apenas se merece a morte! Porquê? A pergunta que sabia não ter resposta mas que teimava em vir-lhe ao pensamento a cada minuto volvido. E o cheiro fétido do medo; o amargo no fundo da boca porque rodeado de água, olhava à volta e perdera o seu menino de vista. O pânico era cada vez maior. Pedro, deixa-te de brincadeiras parvas...Pedro! Pedro! Vais apanhar se não apareceres...Nada. Apenas o silêncio e uma calma estranha nas águas. Mergulhou; tornou a mergulhar; mergulhou uma terceira vez e nada! O horror espelhado no rosto transfigurava-o. Não era ele. Não podia ser ele. Ele tinha um filho e quem ali estava perdera o seu. Nadou para terra na esperança de ouvir as gargalhadas traquinas que o tranquilizariam, mas não as ouviu. As roupas estavam no mesmo sítio onde as deixaram - as do Pedro amontoadas como se fossem rodilhas -. Olhou à volta e ainda nada. Pegou no telefone e ligou o 112. Foi a meia-hora mais longa da sua longa vida até chegarem os Bombeiros e o INEM. Foi mais uma hora até encontrarem o corpo debaixo de toda aquela água e o trazerem para terra. E foi ali, mesmo no local onde tantas vezes brincara quando era da idade do Pedro, que toda a sua vida morreu. Era de noite quando chegou à casa da Aldeia. Entrou e nem ligou aos choros da mãe e da mulher porque ele próprio já tinha chorado todas as entranhas. Deitou-se na mesma cama onde na noite anterior o seu filho sonhara, respirou bem fundo todo o cheiro que ele ali deixara e ganhou novas lágrimas para derramar.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

As mãos


     

          As mãos. As mesmas mãos que lhe afagaram o rosto e lhe pentearam a franja com os dedos, tantas vezes quantas conseguia recordar. As mesmas mãos em que depositou incontáveis beijos enquanto dedos nos dedos, se entrelaçavam com as suas. Pele com pele; de mão dadas como se fossem um só ser. Mãos que apertara junto do seu peito, de forma a sentirem o coração bater acelerado. Mãos que lhe limparam lágrimas quando as agruras se faziam sentir, e lhe acalentavam a esperança de nunca estar só. Mãos agora emaranhadas, depositadas sobre o peito; braços dobrados e sorriso leve no rosto; calmo; sereno. Sorriso que só ele podia ver, que só ele conhecia porque a conhecia toda uma vida e as pessoas quando se conhecem assim, sabem tudo o que a outra pensa. Ali deitada, imóvel; em paz; de olhos fechados (quase) a dormir.
            Recordava-se de tudo por que passara; de tudo o que vivera. Tinha agora oitenta anos; ainda mancebo cumprira o Serviço Militar em Goa no Batalhão de Caçadores das Beiras e com carinha de miúdo, foi despejado durante dois longos anos naquela terra que nunca sonhara conhecer, longe do ponto mais longe que alguma vez visitara em vida. Chegou em Maio de 1959. Casou em Novembro e sorriu com ela por breves cinquenta e cinco anos. Um fogacho, dizia sempre que passava mais um ano e festejavam outro aniversário.
            Agora as suas mãos já não acendiam o lume à noite; agora estavam ali quietas e ele olhava para elas e lembrava-se de quando lhe afagavam o rosto. Sabia que nessa noite, ia sentir-se perdido, como quando se perdeu no bosque no dia em que foi com o pai buscar lenha e decidiu correr sem direcção. Mas desta vez não tinha ninguém que o procurasse; ninguém que lhe secasse as lágrimas que sentia brotarem-lhe da alma quando lhe vinham à memória os momentos que passara com a sua “velhinha”.
            As filhas bem lhe disseram venha connosco para Lisboa; o pai não vai ficar aqui sozinho. Deixar a Aldeia? Nunca: ali é o seu lugar. Só saiu da terra para fazer o Serviço Militar e nunca mais. O mundo é muito grande mas é para os outros. Para mim ser feliz é estar aqui sentado, à soleira da porta; beber um copo na taberna do Ti Jacinto; ver o nascer e o pôr-do-sol por trás do Monte e sentir-me junto dela. Descambou. O choro aprisionado na alma encontrou fuga – ainda era do tempo em que os homens não choravam – quando se lembrou: a minha Mariana. E agora?
            As filhas agarradas a ele; os netos a correr uns com os outros, fartinhos de ali estar; a Aldeia toda presente e ele ali a chorar. E as filhas a dizer o pai devia vir connosco para Lisboa e ele a dizer que nunca saíra dali.
            O Padre da Aldeia chegou. Disse a Missa. Fechou-se o Caixão e todos seguiram no funeral até ao cemitério. Ao chão desceu a sua Mariana, e ele a chorar – que vergonha, um homem a chorar – a minha Mariana. Fiquei sem a minha Mariana. Punhados de terra a bater na madeira, e as filhas e os netos a partir rumo às suas vidas: o pai não quer mesmo vir connosco? Nem pensar, que eu nunca saí da Aldeia sem ser no Serviço Miliitar.
            Em casa, nessa noite, sonhou que era outra vez novo; a sua Mariana era uma moça bonita, cheia de vida e dançava junto ao ribeiro, pés descalços afogados na água. Sorriu-lhe e deram as mãos. As mãos que se entrelaçavam nas suas e lhe afagavam o rosto. Caminharam lado a lado juntos e ele ganhou uma nova esperança. A esperança de sonhar com ela todas as (poucas) noites que ainda lhe restavam até que as suas mãos se cruzassem de vez sobre o seu próprio peito.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Mechanical toasts...





    Caminho para a cozinha como um autómato em piloto automático e preparo umas torradas mecânicas com manteiga. Acompanho com café geriátrico por não ter vontade nem ensejo de fazer seja o que for e saio para a rua. O Sol ainda nem cabriolou no horizonte; estou certo de que hoje chego a horas. Calcorreio as ruas sem olhar para o lado, com os olhos postos no vazio; chego a Piccadilly e entro na Estação de Metro. À minha volta, almas sorumbáticas olham-me de alto a baixo; a Estação praticamente vazia denuncia a madrugadora hora a que ali me encontro; olho para o relógio e finalmente apercebo-me que faltam dez minutos para as seis...tão cedo! Mais cedo que chega mesmo a ser cedo para ser cedo. A esta hora, numa Segunda-feira comum, costumo abordar o chão com os pés ainda descalços, em busca dos chinelos; tacteando aqui e ali sem nunca os encontrar à primeira. Só depois de vários suspiros é que me levanto, pronto (mas pouco) para mais um dia de labuta.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

London calling...









Quase onze horas. Os letreiros dos bares anunciam o pequeno-almoço inglês. Pessoas passeiam nas ruas. Hoje mais calmas, sem o reboliço quotidiano apesar de movimentadas. Londres é sem dúvida uma cidade moderna, que respira e vibra. Cheia de gente jovem e que transborda história por todos os poros. Os turistas circulam, fotografando aqui e ali. Tudo fervilha vida.
Como com calma na esplanada os meus ovos mexidos, acompanhados por duas salsichas. Um sumo de laranjas acabadas de espremer: todo um perfume concentrado num só copo; o pão quente liberta o aroma da manteiga derretida misturados com o fumegar de uma chávena de café que se espalha pelo ar e nos faz salivar. Abro o jornal; as mesmas notícias de sempre. A crise da Europa; o elogiar do espírito inglês, que não entrou nas aventuras da moeda única. Nem quer (e fez muito bem); o jogo da semana entre o United e o Chelsea; uma visita da Lady Kate a um Hospital - desta feita ao dos veteranos -. Hoje está um dia particularmente bonito. O sol brilha e enche de alegria toda a cidade, habituada ao cinzento das nuvens. Foi difícil ao princípio. Sou português, trago o sol na alma. O mar sempre próximo - é um país pequeno -, recordando-nos o espírito aventureiro das Descobertas; daqueles que partiram sem ter a certeza de um regresso. "Dar novos mundos ao mundo", aprendemos na Escola. A nossa História é feita de heróis: Afonsos, Joões, Vascos, Pedros. Mas no fundo, país que começa com um gajo a bater na mãe, nunca podia chegar a bom porto!.