Ali estava sentado, à espera. Não
sabia bem do quê, mas esperava. Parecia-lhe aliás a melhor solução. A única
pensava para si mesmo. Enquanto isso, metros mais à frente, uma equipa médica
lutava incansavelmente por um sinal de vida no olhar. Nada parecia resultar.
Dez minutos, quinze, vinte e por fim, deram por terminado todo o esforço sem
qualquer sucesso. A vida tem mortes assim. Estúpidas. Todas as mortes são
estúpidas quando se é apenas uma criança. Ele observava afastado, junto de si
um psicólogo tentava mostrar-lhe que a vida tem que continuar. Tudo ruiu quando
viu a brancura do lençol a tapar por completo o corpo da pessoa que mais amava
no mundo. Mais do que a si mesmo. Mais que o maior amor que um dia sentiu. Não
queria; não podia acreditar. Não aceitava que com doze anos alguém pudesse
fechar para sempre os olhos. Tanta brincadeira que ainda havia. Tanto escorrega
para descer, Natais para festejar, prendas para rasgar o papel e bolos de anos
para saborear - chocolate! Tinham de ser sempre de chocolate. Parecia não haver
sabor no mundo que mais lhe agradasse. Tudo agora perdera o sentido. Olhava com
os olhos fixos, nublados pelas gotas que lhe transbordavam das pálpebras e
escorriam pelo rosto. Pudera trocar de lugar com ele e não hesitaria uma única vez.
Nos seus quarenta e três anos nunca sentiu uma dor tão imensa. A ponto de lhe
rasgar a alma, que é impossível de rasgar. Nada, nem ninguém merece uma dor
assim. Tudo porque naquele dia decidiu ir nadar na lagoa da Aldeia que o viu
nascer. E levar consigo o seu mais-que-tudo. Em casa, lembrara-se agora,
certamente que a mãe estava a preparar a refeição. Um fim-de-semana com Feriado
dá sempre um jeitaço para pôr em dia as tarefas de ser pai e filho: umas
corridas atrás de uma bola, umas quedas de bicicleta quando se teima em fazer
com o corpo aquilo que depois dos quarenta se torna mais difícil. Um minuto de
distracção...uma merda de um minuto. Não foi mais que isso e nesse mesmo minuto
a sua alegria de viver esvaiu-se; desvaneceu-se na água. Encarar-se seria desde
hoje a maior mágoa que poderia viver. Agora precisava de um abraço; de sentir à
sua volta o suave - mas doce - perto de peito no peito e ouvir "Adoro-te
Pai!". A vida do seu filho era a sua vida e agora que o perdera, perdera
com ele a sua vida. O choro já não saía porque todas as lágrimas que tinha
dentro de si tinham já encontrado o caminho que corre rosto abaixo, perdendo-se
para sempre como para sempre se perdeu alguém que se ama. Imaginava o dia
seguinte - não porque o quisesse viver, que por si juntava-se já ao seu filho -
: o escuro vazio da dor e da ausência; a demência da solidão mesmo que
acompanhado; a vida quando apenas se merece a morte! Porquê? A pergunta que
sabia não ter resposta mas que teimava em vir-lhe ao pensamento a cada minuto
volvido. E o cheiro fétido do medo; o amargo no fundo da boca porque rodeado de
água, olhava à volta e perdera o seu menino de vista. O pânico era cada vez
maior. Pedro, deixa-te de brincadeiras parvas...Pedro! Pedro! Vais apanhar se
não apareceres...Nada. Apenas o silêncio e uma calma estranha nas águas.
Mergulhou; tornou a mergulhar; mergulhou uma terceira vez e nada! O horror
espelhado no rosto transfigurava-o. Não era ele. Não podia ser ele. Ele tinha
um filho e quem ali estava perdera o seu. Nadou para terra na esperança de
ouvir as gargalhadas traquinas que o tranquilizariam, mas não as ouviu. As
roupas estavam no mesmo sítio onde as deixaram - as do Pedro amontoadas como se
fossem rodilhas -. Olhou à volta e ainda nada. Pegou no telefone e ligou o 112.
Foi a meia-hora mais longa da sua longa vida até chegarem os Bombeiros e o
INEM. Foi mais uma hora até encontrarem o corpo debaixo de toda aquela água e o
trazerem para terra. E foi ali, mesmo no local onde tantas vezes brincara
quando era da idade do Pedro, que toda a sua vida morreu. Era de noite quando
chegou à casa da Aldeia. Entrou e nem ligou aos choros da mãe e da mulher
porque ele próprio já tinha chorado todas as entranhas. Deitou-se na mesma cama
onde na noite anterior o seu filho sonhara, respirou bem fundo todo o cheiro
que ele ali deixara e ganhou novas lágrimas para derramar.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
quarta-feira, 30 de abril de 2014
As mãos
As
mãos. As mesmas mãos que lhe afagaram o rosto e lhe pentearam a franja com os
dedos, tantas vezes quantas conseguia recordar. As mesmas mãos em que depositou
incontáveis beijos enquanto dedos nos dedos, se entrelaçavam com as suas. Pele
com pele; de mão dadas como se fossem um só ser. Mãos que apertara junto do seu
peito, de forma a sentirem o coração bater acelerado. Mãos que lhe limparam
lágrimas quando as agruras se faziam sentir, e lhe acalentavam a esperança de
nunca estar só. Mãos agora emaranhadas, depositadas sobre o peito; braços
dobrados e sorriso leve no rosto; calmo; sereno. Sorriso que só ele podia ver,
que só ele conhecia porque a conhecia toda uma vida e as pessoas quando se
conhecem assim, sabem tudo o que a outra pensa. Ali deitada, imóvel; em paz; de
olhos fechados (quase) a dormir.
Recordava-se de tudo por que
passara; de tudo o que vivera. Tinha agora oitenta anos; ainda mancebo cumprira
o Serviço Militar em Goa no Batalhão de Caçadores das Beiras e com carinha de
miúdo, foi despejado durante dois longos anos naquela terra que nunca sonhara
conhecer, longe do ponto mais longe que alguma vez visitara em vida. Chegou em
Maio de 1959. Casou em Novembro e sorriu com ela por breves cinquenta e cinco
anos. Um fogacho, dizia sempre que passava mais um ano e festejavam outro
aniversário.
Agora as suas mãos já não acendiam o
lume à noite; agora estavam ali quietas e ele olhava para elas e lembrava-se de
quando lhe afagavam o rosto. Sabia que nessa noite, ia sentir-se perdido, como
quando se perdeu no bosque no dia em que foi com o pai buscar lenha e decidiu
correr sem direcção. Mas desta vez não tinha ninguém que o procurasse; ninguém
que lhe secasse as lágrimas que sentia brotarem-lhe da alma quando lhe vinham à
memória os momentos que passara com a sua “velhinha”.
As filhas bem lhe disseram venha
connosco para Lisboa; o pai não vai ficar aqui sozinho. Deixar a Aldeia? Nunca:
ali é o seu lugar. Só saiu da terra para fazer o Serviço Militar e nunca mais.
O mundo é muito grande mas é para os outros. Para mim ser feliz é estar aqui
sentado, à soleira da porta; beber um copo na taberna do Ti Jacinto; ver o
nascer e o pôr-do-sol por trás do Monte e sentir-me junto dela. Descambou. O choro
aprisionado na alma encontrou fuga – ainda era do tempo em que os homens não
choravam – quando se lembrou: a minha Mariana. E agora?
As filhas agarradas a ele; os netos
a correr uns com os outros, fartinhos de ali estar; a Aldeia toda presente e
ele ali a chorar. E as filhas a dizer o pai devia vir connosco para Lisboa e
ele a dizer que nunca saíra dali.
O Padre da Aldeia chegou. Disse a
Missa. Fechou-se o Caixão e todos seguiram no funeral até ao cemitério. Ao chão
desceu a sua Mariana, e ele a chorar – que vergonha, um homem a chorar – a minha
Mariana. Fiquei sem a minha Mariana. Punhados de terra a bater na madeira, e as
filhas e os netos a partir rumo às suas vidas: o pai não quer mesmo vir
connosco? Nem pensar, que eu nunca saí da Aldeia sem ser no Serviço Miliitar.
Em casa, nessa noite, sonhou que era
outra vez novo; a sua Mariana era uma moça bonita, cheia de vida e dançava
junto ao ribeiro, pés descalços afogados na água. Sorriu-lhe e deram as mãos.
As mãos que se entrelaçavam nas suas e lhe afagavam o rosto. Caminharam lado a
lado juntos e ele ganhou uma nova esperança. A esperança de sonhar com ela
todas as (poucas) noites que ainda lhe restavam até que as suas mãos se
cruzassem de vez sobre o seu próprio peito.
sexta-feira, 7 de março de 2014
Mechanical toasts...
Caminho para a cozinha como um autómato em piloto automático e preparo umas torradas mecânicas com manteiga. Acompanho com café geriátrico por não ter vontade nem ensejo de fazer seja o que for e saio para a rua. O Sol ainda nem cabriolou no horizonte; estou certo de que hoje chego a horas. Calcorreio as ruas sem olhar para o lado, com os olhos postos no vazio; chego a Piccadilly e entro na Estação de Metro. À minha volta, almas sorumbáticas olham-me de alto a baixo; a Estação praticamente vazia denuncia a madrugadora hora a que ali me encontro; olho para o relógio e finalmente apercebo-me que faltam dez minutos para as seis...tão cedo! Mais cedo que chega mesmo a ser cedo para ser cedo. A esta hora, numa Segunda-feira comum, costumo abordar o chão com os pés ainda descalços, em busca dos chinelos; tacteando aqui e ali sem nunca os encontrar à primeira. Só depois de vários suspiros é que me levanto, pronto (mas pouco) para mais um dia de labuta.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
London calling...
Quase onze
horas. Os letreiros dos bares anunciam o pequeno-almoço inglês. Pessoas
passeiam nas ruas. Hoje mais calmas, sem o reboliço quotidiano apesar de
movimentadas. Londres é sem dúvida uma cidade moderna, que respira e vibra.
Cheia de gente jovem e que transborda história por todos os poros. Os turistas
circulam, fotografando aqui e ali. Tudo fervilha vida.
Como com
calma na esplanada os meus ovos mexidos, acompanhados por duas salsichas. Um
sumo de laranjas acabadas de espremer: todo um perfume concentrado num só copo;
o pão quente liberta o aroma da manteiga derretida misturados com o fumegar de
uma chávena de café que se espalha pelo ar e nos faz salivar. Abro o jornal; as
mesmas notícias de sempre. A crise da Europa; o elogiar do espírito inglês, que
não entrou nas aventuras da moeda única. Nem quer (e fez muito bem); o jogo da
semana entre o United e o Chelsea; uma visita da Lady Kate a um Hospital - desta feita ao
dos veteranos -. Hoje está um dia particularmente bonito. O sol brilha e enche
de alegria toda a cidade, habituada ao cinzento das nuvens. Foi difícil ao
princípio. Sou português, trago o sol na alma. O mar sempre próximo - é um país
pequeno -, recordando-nos o espírito aventureiro das Descobertas; daqueles que
partiram sem ter a certeza de um regresso. "Dar novos mundos ao mundo", aprendemos na Escola. A nossa
História é feita de heróis: Afonsos, Joões, Vascos, Pedros. Mas no
fundo, país que começa com um gajo a bater na mãe, nunca podia chegar a bom
porto!.
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