quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Amor sem idade...






        Amor...amas-me? Claro que sim - respondi sem hesitar, como se a mais pequena hesitação fizesse daquela verdade a maior mentira dita por alguém -. Mesmo assim? Como estou? Como estás - perguntei sabendo a resposta -. Sim: velha; doente; mal me consigo mexer! Não vês? Não - respondi -, não vejo. Vejo os teus cabelos brancos: como suave algodão. Vejo os teus olhos: janelas da alma, que contam uma história de alegrias e tristezas. Vejo as tuas mãos: enrugadas; cheias de percursos. Vejo o teu rosto: seco; com doces manchas que o tempo fez. Amo-te hoje mais do que no dia em que te conheci - continuei -. Mentiroso! Sei que isso não é verdade. Não podes amar aquilo que vês: não se ama alguém cuja morte se prepara para bafejar. Enganas-te - disse-lhe -, ainda vais andar por cá uns largos anos: alegra-te porque para tristezas, já basta a crise e o que nos têm levado nestes últimos anos. Além do mais - continuei, para reforçar -, o amor nunca morre. E quem sabe se ainda vou primeiro que tu? Parvo, isso nunca. Não podia continuar viva sem ti; sem os teus abraços; sem as tuas piadas pela manhã; sem o teu pequeno-almoço carinhosamente preparado e tomado na cama: já não me levanto faz meses. É amor – disse. Não duvides. Amo-te mais do que é possível amar alguém.
          E foi nesse dia, de mãos entrelaçadas e os lábios dele colados na sua testa, que ela  fechou os olhos - com um lindo sorriso estampado no rosto; um sorriso de paixão eterna -, para nunca mais acordar.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Despertador...

   Os despertadores são como correntes de ferro: amarram-nos a uma vontade que não é nossa. Marcam-nos o tempo e exigem. Só sabem fazer isso; exigir. E exigem que acordemos e marcam os minutos e as horas sempre sem parar num contínuo e perpétuo avanço. Se fossem humanos, seriam Oficiais das SS nazis, forçando-nos a caminhar, doentes, combalidos; escravos.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Rush Hour...

 
     Quarta-feira. O dia entaladinho, como lhe costumo chamar. Raios! Seis e quarenta e cinco - atrasado. Mais uma vez atrasado. Isto de fiar no relógio biológico é uma treta. Quarenta e cinco minutos tarde. Levanto-me num ápice. Salto da cama e caminho apressado para o WC - não tenho tempo para um banho nem para aparar a barba. Passo a cara por água fria; gélida - não posso perder tempo a esperar pela quente. 
         Corro para o quarto. Que roupa? Foda-se! Ontem esqueci-me por completo de ir à lavandaria buscar o que lá deixei. Improviso qualquer coisa. Uns jeans e uma camisola de gola alta. Vermelha - gosto de cor -, para cinzento basta o céu e as pessoas que viajam no Metropolitano de manhã recordando-nos o triste rosto de um bezerro quando entra no matadouro e sabe ao que vai. Olhares deprimidos, olhares longínquos - repletos de amargura -, temerosos. 
        Viajo até à cozinha - sete e dez -, não posso perder mais tempo. Agarro na gabardina e saio porta fora, deixando para trás o conforto de um lar. O meu lar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Clausura...






          (...) viver a dois é sempre uma relação egoísta. Com interesses. Amar o outro é prendê-lo a nós. É querer que o outro se torne outro, porque amamos o nós. E o nós, só nós o conhecemos porque está oculto - mas à espreita - na mente de cada um. Amamos um ideal. O outro nunca é o nosso ideal.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Avós...






   As avós sabem sempre tudo. Crescer sem avó é como ser lançado no meio de uma batalha sem armadura; sem qualquer arma para fazer frente às lanças que nos espetam. Eu cresci sem avó. A minha partiu quando eu tinha apenas doze anos. Uma idade terrível para se ficar só, sem poder contemplar o branco dos cabelos, sem poder sentir um abraço, um beijo de conforto. E sem ouvir uma reprimenda quando entornamos o leite na mesa, ao lanche; que à hora do comer não se brinca e agora com tanta coisa para fazer, tenho mais uma toalha para lavar, o raio do miúdo que não está sossegado. 

   Tenho tantas, mas tantas saudades. Há lá no mundo maior valor que o valor que têm as avós? Existirá outra coisa que substitua a ternura que um neto sente por uma avó e o amor que ela sente por nós? Ser avó é ser mãe; e logo duas vezes, daí o amor ser a dobrar. Deus pensou mal; as avós só podiam descansar eternamente, quando os netos fossem eles próprios avós e tivessem netos para dar muito amor. Nunca antes.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Velhos...


Os velhos são velhos porque têm muita vida enclausurada dentro deles. É essa vida que lhes dá a beleza de um rosto enrugado, cheio de histórias para contar; de mágoas e alegrias. Até à morte; em que tudo acaba e a vida finalmente se liberta.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Wittgenstein



         Sentado no terraço, admirando aquele céu (normalmente cinzento, mas hoje, anormalmente azul) enquanto sorvia o meu Earl Grey das cinco, lembrei-me subitamente de Wittgenstein.
         A importância exagerada que ela dava a tudo o que fosse perfeitamente simétrico (e que tantas discussões gerava), sem o mínimo detalhe fora do lugar, ali e não mais ao lado; ficava tonto com tanta perfeição imaculada. Sorri; era mesmo isso; estava apaixonado por uma “Wittgensteina” (se se pudesse usar a mesma regra da formação do feminino nos nomes alemães).
            Por vezes, era exasperante; não deixes a pasta de dentes fora do copo; limpa a merda da escova antes de a meteres na gaveta, foda-se...deixas tudo molhado; olha a sapataria na sala...não te custa levar para o quarto. Irra!
           Os melhores momentos eram os que estava em casa sozinho; nesses dias, deixava tudo espalhado pelo chão, só para me sentir satisfeito. Camisa, calças, cuecas e (pormenor importante) uma meia em cada canto.
             Sou demasiado apegado a Londres para perder tempo em Paris (eu perdoo quem não pensa assim, podem ficar descansados). 


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Eros...









 

                Há anos que não se sentia assim tão feliz; contente por pisar de novo o chão de Piccadilly Circus.
                Foi aos 17 anos, idade com que fez a sua primeira viagem a Terras de Sua Majestade; seguramente o seu primeiro Interrail. Fez mais, depois; julga que uns cinco ou seis.
                Desta vez, aliás como desde os seus 23, em que passou a viajar para Londres à procura de novas gentes e novos espaços para fotografar, Carlos não foi de comboio; o avião é tão mais confortável e rápido, pensou!
                Estava de novo junto à Estátua de Eros, local onde a viu pela primeira vez; tão mais nova, tão mais misteriosa.
                Dela, nessa altura, nada sabia; ouviu-a falar e logo reconheceu a Língua de Camões. Foi o bastante; meteu-se com ela. Ela sorriu, mas não lhe respondeu; corou apenas.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Amor...


“O melhor de tudo é o Amor...”, dizias tu enquanto estávamos “enroscados” um no outro, ainda suados. Eu contrapus, que o melhor era mesmo sentirmo-nos apenas um, apesar de viver em dois corpos separados; que só o Amor não basta, que também faz falta a cumplicidade e isso só com o passar dos anos se conquista. Sorriste, disseste que o Amor era tudo, porque sem Amor nunca existiria cumplicidade, nem união. Argumentei de novo...o Amor é um sentimento egoísta, que nos inunda a alma num momento, mas que quase sempre arrefece. Já a cumplicidade, essa só acontece quando duas almas não suportam mais a ideia de viver separadas e como quase por mútuo consentimento, decidem fundir-se
numa só. Fizeste uma piada sobre fundir e rimo-nos com vontade. Vês, disse eu, é isto que te digo. Cumplicidade. Pensámos exactamente na mesma coisa, sem tirar nem pôr. Acendeste um cigarro (sempre o fazes quando estamos entre quecas); mergulhaste de repente num preocupante silêncio. Olhaste para mim e vi subitamente uma lágrima. Disseste-me que tinha sido o fumo do cigarro, que tinha entrado para o olho e te fizera chorar. Pensei em perguntar, mas nem tive tempo. Beijaste-me para que não falasse. Não querias conversa...percebi pelo frio do abraço que algo tinha surgido no teu pensamento, e que não estarias disposta a partilhar. “A penny for your thoughts”, disse-te em tom de brincadeira mas sem vontade de
brincar. Disseste que precisavas de regressar a Paris, que a tua vida académica assim o exigia.Procurei acalmar-te; dizer-te que de Londres a Paris não era assim tanto tempo de voo...e que até quem sabe, seria uma boa oportunidade para eu atravessar o Canal da Mancha a nado. Sorrimos e enroscámo-nos para mais uma tórrida e animalesca sessão...

Estrada fora.

Não, não podia continuar, pensou. Conduzia sem destino, estrada fora, sem parar. Carlos sabia, sabia que não devia continuar. Voltar atrás...não avançar...regressar. Pensou melhor; talvez não. Pisou o pedal com força, não fosse arrepender-se. Já não era ele, era outro diferente.
Carlos perdera. Perdera o amor, a vida, o ser.
Nada. Nada valia nada. Fim.
Que estúpido fora, que palerma, sabia agora. Carlos acordara, era um homem diferente.
Sentia-se renovado, apesar de tudo feliz.
Infelizmente feliz; tristemente alegre. Cheio de fel, mas contente, agora que descobrira.
Tudo fazia sentido. Tanta mentira feita verdade; tanta história...porquê?
Tudo terminara. Nada mais resta, que acalme a alma. Atirar para trás, simplesmente esquecer; deitar fora.